Íntegro, trabalhador, forte, sensível, chefe de família, bom profissional e negro.
Combatente da luta antirracista com mais de 50 anos de história e dedicação a política e ao desfazimento das mentiras que contam sobre nós.
Ele chorou ao falar sobre a chacina do Jacarezinho.
Os grupos de WhatsApp viraram tribunas de debates em que pessoas de alto valor têm conceitos sobre tudo o que acontece neste mundo. Vomitam suas opiniões com a empáfia de quem é proprietário das grandes verdades deste mundo.
E, mesmo sem saber da realidade de todos os mundos, muitas vezes emitem opiniões cruas, pontiagudas e frias sobre territórios onde nunca pisaram. Essas opiniões magoam e tiram sangue do coração das pessoas simples que possuem naqueles territórios sua única identidade social, emocional e histórica.
Enquanto narrava para nós os terríveis e temíveis momentos passados, dentro de sua casa e bem cedo, ao despertar com o barulho dos caveirões aéreos, ele não conteve as lágrimas e chorou.
Não foi apenas pelas mortes, nem pela falta de cuidado do estado ao invadir a favela, ou mesmo pela agressividade e violência policial, mas pelo absoluto direito a ter paz.
Nascer, crescer e viver em uma periferia carioca é não ter paz em momento algum de sua vida.
Não somente sobre ser atormentado pelos “meninos” do movimento; por todas as tentativas de melhorar o lugar que se escolhe para habitar; sentir medo permanente de ser confundido pela política ao andar com seu guarda-chuvas, sua furadeira ou correr para não perder o horário do ônibus.
Não é somente não poder pegar o ônibus ou o metrô conversando alegremente com seus amigos em um dia de sol ardente; sobre andar livremente sem lenço e sem documentos; ou mesmo planejar seus dias sem a preocupação com as inesperadas operações policiais e fechamentos do bairro pela rapaziada que controla a pista.
Não!!! Não é só isto e você que só vai lá com seu celular em dias de protesto, para filmar toda a nossa revolta, talvez nunca saberá o que é esse sentimento de menor valor.
Se sentir menos cidadão cada vez que um elemento do alto escalão das forças de segurança, do ministério público ou de algum desses poderes constituídos resolvem brincar de vídeo game com a sua realidade de outros como você: pobres, pretos e favelados.
Leis, constituição e complexos pensamentos acadêmicos sobre os reais objetivos da operação policial, do dia 06 de maio, na Favela Carioca do Jacarezinho, servem muito pouco para os dias que se seguirão e terão de continuar a acontecer, porque é assim e nunca muda.
Como explicar aquela criança de oito anos, cuja morte do irmão aconteceu no quarto de ambos; aquela idosa com limitações de movimentos teve que limpar o chão sujo de sangue do jovem morto em sua sala; ou para a vizinhança das casas invadidas, que também tinham que passar nas vielas molhadas pelo banho de sangue da carnificina.
E como entender o elaborado relatório midiático que JUSTIFICAVA AS AÇÕES DO NOVO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO: “NÃO MORREU NENHUM CIDADÃO DE BEM. TUDO BANDIDO”
A substituição dos soldados é rápida, pelas forças de segurança ou pelo crime organizado. É um sistema que tem engrenagens de ser reorganizado, com novas táticas e novos prepostos.
Vejo gente dizendo que não foi tragédia nada e botam para fora sua agressividade, seu nojo e suas inseguranças. É uma onda de agressividade e ódio que tomou conta do Brasil desde 2016 e vem nos contaminando, a todas e todos, em nossos espaços de luta, nas comunidades, templos e grupos da família. Instalaram TRIBUNAIS DO SANTO OFÍCIO por toda a parte.
Conversas que acabavam em sorrisos e bares, hoje podem acabar nesses velhos tribunais, com novas roupagens de uma ética pessoalizada, distorcida, manipulada e cínica.
Há fogueiras armadas e elas não possuem gravetos e chamas, somente o escárnio das novas tecnologias e a rapidez virtual que consomem imagens, histórias e vidas.
Quem pagará por esse ato amoral e indigno de meticulosa maldade?
Não existe o senso de responsabilidade; a crise ética; a conveniência política e institucional: só ódio. Banir, deletar, excluir e cancelar viraram a tônica dos diálogos. O expurgo é rápido, cirúrgico, imediato.
Por isto a morte não tem valor, e a vida muito menos.
Eu vi um homem chorar e em suas lágrimas senti o barulho do desmoronar de toda a dimensão de ética de nossa resistência e ancestralidade. Compreendi que vivemos o submundo da ética capitalista. Branca e cristã: sem remorsos, pois “quem não concorda comigo é ímpio!”
Diante disto, como uma pessoa que tem nos saberes aprendidos com os mais velhos, a maior de nossas verdades, só nos resta recitar a preta velha:
“se aquiete mizi fio que tudo com Tempo, Tempo tem.”
Asé!